Traduzindo música – O princípio do pentatlo de Peter Low

Extraído da obra Tradução e música: versões cantáveis de canções populares (2015) de Adriana Fiuza Meinberg
Editado e adaptado por Rafael Oliveira
Em 11/06/2020

O professor neozelandês Peter Low desenvolveu um modelo teórico para se traduzir uma versão cantável denominada como “Princípio do pentatlo”, que utiliza cinco critérios. Assim como no pentatlo olímpio, cada um desses critérios é uma prova na qual o versionista precisa tentar fazer o seu melhor, mas é importante estar ciente de que talvez seja preciso favorecer algumas provas em detrimento de outras, mas sempre pensando no bem resultado da competição como um todo.

Estes cinco critérios são: cantabilidade, sentido, naturalidade, ritmo e rima.

Cantabilidade

É preciso lembrar que a versão deve ser feita para ser apresentada, não lida. O versionista precisa levar em consideração problemas como a dicção e a prosódia musical (mantendo as sílabas tônicas nos tempos fortes da música). As vogais originais em notas longas ou agudas normalmente favorecem o cantor, e devem ser preservadas sempre que possível.

Em se tratando de teatro musical, vale também lembrar que a plateia costuma ouvir a letra uma única vez. Nas palavras de Stephen Sondheim: “A letra de música deve existir no tempo. O ouvinte não consegue fazer o que o leitor de poesia faz. Não pode determinar a velocidade da leitura e não pode reler a frase. Por isso, a letra da canção deve ser absolutamente clara no momento em que é cantada e o letrista deve se certificar disso. Criar frases que possam entrar no ouvido.”[1]

Sentido

Um dos aspectos mais facilmente observados pelo público que conhece a letra original da canção, trata de manter o máximo possível o que se conta na canção original. Para se encaixar nas rimas, na melodia e no ritmo original, é inevitável que palavras sejam manipuladas, mas o versionista deve se manter na semântica do original.

Diferente da versão de uma canção popular, que possui mais liberdade, no teatro musical este aspecto deve ser observado com mais cuidado, pois existe uma história a ser contada e ela deve ser respeitada.

Naturalidade

A versão precisa soar natural, como se ela tivesse sido criada para aquela melodia desde o princípio. Quem não conhece o original não deve perceber que se trata de uma versão. Para isto, o versionista precisa escolher bem as palavras, respeitar a ordem dos termos da oração (evitar falar “de você eu gosto” ao invés de “eu gosto de você”) e procurar imitar a fala sempre que possível, utilizando-se, por exemplo, das elisões silábicas que usamos na língua falada (falar “d’água” ao invés de “de água” e “tenhuma” ao invés de “tenho uma”, por exemplo).

No teatro musical, deve-se levar em consideração também o que soaria natural para aquele personagem específico. A versão precisa estar condizente com o nível de educação, condição financeira, época e lugar onde vive (para citar alguns) de forma com que possamos acreditar que aquele personagem esteja realmente dizendo (e sentindo!) aquilo. O gênero musical e o estilo da canção também precisam ser observados.

Ritmo

Deve-se respeitar a métrica e a prosódia da canção original, os tempos fortes precisam estar nos mesmos lugares. Ao se acrescentar sílabas teremos que acrescentar notas na melodia, mudando a composição original, o que não é muito bem-vindo.

Deve-se observar que, por vezes, uma palavra chave ocupa o tempo forte do compasso justamente para que ela tenha uma ênfase que pode ser importante para a história. Este tipo de efeito, quando presente, precisa ser analisado e considerado na versão sempre que possível.

Lembrando que a contagem de sílabas deve ser feita de ouvido ou seguindo a partitura (uma nota para cada sílaba), pois a contagem das sílabas poéticas tradicionais não leva em conta que a música é feita para ser ouvida, e não lida.

Rima

A estrutura de rimas da canção original deve ser observada cuidadosamente pois, por vezes, existem rimas internas que passam desapercebidas numa primeira análise. Existem esquemas rítmicos que fazem com que a rima seja esperada pelo público e, por isso, devem ser respeitadas.

Deve-se evitar repetir sempre as mesmas rimas. No português é fácil rimarmos verbos e isto torna a rima, de certa forma, previsível para a plateia. Se você quer manter a atenção do ouvinte, é necessário surpreende-lo, sempre que possível, com rimas criativas e inesperadas.

Apesar destes cinco critérios cobrirem muito do que precisa ser analisado na maioria das canções, estamos falando de arte. Existem canções específicas em que adaptações no método precisam ser feitas, como em School song do musical Matilda,onde a pronúncia das letras do alfabeto estão ocultas em cada verso, ou A lovely night de Cinderella de Rodgers e Hammerstein, onde a repetição sonora de fonemas (aliteração) traz uma nova vida ao verso “A finer night you know you’ll never see” e precisa ser considerado na versão (Quem sabe “Que em sonhos sabe ser real”?).

Alguns estudiosos no assunto, como Henry S. Drinker sugerem um sexto critério, chamado de “espírito” ou “inspiração” que trata daquele “não sei o quê” que torna a canção interessante. Apesar de ser difícil de explicar, isto indica que se existe algo que faça você gostar de um determinado trecho de uma canção, pare para analisar, pois é desejável que isto, seja lá o que for, também esteja presente na versão.

E é importante deixar claro que, por mais que seja o ideal, é praticamente impossível fazer uma versão que atenda ao mesmo tempo com perfeição os cinco critérios que abordamos. Como diz o versionista Carlos Rennó:

“Traio um verso para não trair uma estrofe, traio uma estrofe para não trair o poema. Assim, traindo sempre, não traindo nunca, concilio dois desejos cuja realização é fundamental na concepção do trabalho: o de rigor e o de liberdade.

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[1] Extraído do filme documentário Six by Sondheim (2013) produzido pelo canal HBO.